A ciranda da desconfiança



Crises prolongadas entorpecem o discernimento social e ofuscam o divisor entre o declínio e aquele ponto irreversível, quando se cruza a linha de não retorno.

O desfecho dessa baldeação que a Europa tem ensaiado nos últimos meses poderá ocorrer na cúpula do euro que se reúne na próxima 6ª feira, quando indagações sistematicamente adiadas terão que ser respondidas.

O tempo das protelações esgotou, mas não há um número que caracterize esse estágio responsável por fazer da Europa o epicentro atual da crise do capitalismo.

As balizas do desastre orbitam em torno de uma palavra: desconfiança.
A desconfiança secou, por exemplo, o crédito interbancário, essencial para equilibrar o fluxo de caixa entre as instituições e suprir a demanda por crédito na economia. Foi ela também que desidratou os fluxos de dólares dos bancos norte-americanos para os europeus, obrigando a uma operação de socorro de seis grandes BCs , na semana passada.

As instituições que desconfiam reciprocamente de sua solvência estão soterradas por carteiras de títulos públicos adquiridos de nações em processo de decomposição fiscal: Grécia, Itália, Espanha, Portugal, Bélgica e outros.

Não se trata de força de expressão, mas de uma avalanche de somas e prazos perturbadores. Em 2012, bancos europeus terão que renovar captações no valor de 700 bilhões de euros. Se a desconfiança persiste neles e entre eles, essa rolagem será impossível.

O capitalismo não funciona se o sistema bancário for obstruído pelo vírus da desconfiança. Hoje os detentores de capitais preferem estacionar seus recursos em títulos germânicos e norte-americanos que pagam taxas de juros negativas, em prazos de seis meses a um ano, a investir em produtos bancários.

Preferir aplicações que vão devolver menos que a inflação ilustra o grau de descrédito nas instituições que deveriam dar capilaridade e confiança à economia do euro. Os próprios bancos da UE bateram seu recorde em depósitos no BCE nesta 2ª feira: tem 332 bilhões de euros guardados na instituição, rendendo 0,5%, contra 0,75% se emprestassem entre si. Não deixa de ser irônico: os titãs da desregulação preferem a ração estatal rala aos riscos embutidos nas opções oferecidas pelos livres mercados.

A sobrevivência de uma moeda fica impossível sem a confiança dos agentes econômicos na sua capacidade de cumprir alguns atributos intransferíveis. O euro ainda funciona como unidade de conta e meio de troca, mas as evidências indicam que é cada vez mais contestado no papel essencial do dinheiro: o de reserva de valor.

O que o impede de cumprir esse apanágio é o colapso fiscal de um número crescente de economias, cuja insolvência latente contamina a moeda na qual estão nominadas suas dívidas. Embora não seja o único, o caso italiano é o mais grave da lista.

A Itália é a 3ª maior economia do euro; tem a 4ª maior dívida do mundo, cerca de dois trilhões de euros. A desconfiança dos credores no país - e, por extensão, no euro - se traduz em juros crescentes exigidos do Tesouro romano para financiá-lo. A gula agrava a equação na medida em que quanto mais paga, mais a Itália deve. E quanto mais deve, mais cortes de gastos são requeridos para que possa honrar o serviço do seu passivo, fragilizando as condições gerais da economia e da sociedade. Neste domingo, uma ministra do governo de Mário Monti não conteve as lágrimas ao tentar expor a lógica de um arrocho fiscal impiedoso sobre os aposentados e pensionistas.

Há uma ligadura política que ordena essa cadeia em transe: o princípio neoliberal de que uma economia saudável se conquista quando o Estado --e,portanto,a sociedade-- se submete às exigências do mercado. E não o contrário.

A crise atual resulta justamente do fracasso desse ordenamento, que implodiu após 30 anos de supremacia de finanças desreguladas e de Estados amordaçados.

A mãe de todas as desconfianças no euro decorre justamente da duvidosa capacidade - e vontade - política das lideranças da UE que redesenharem as bases da UE fora dessa lógica. Uma primeira providencia para isso seria de
sdobrar a restrita união monetária atual em efetiva integração, num sistema mutual de responsabilidades que incluísse o compartilhamento das dívidas soberanas.

Se isso soava utópico há poucos meses hoje é carta corrente nas ponderações mais ecumênicas, embora se ressinta ainda de uma força política de massa capaz de implementá-lo.

Para não implodir, o sonho da União Européia precisa de um novo protagonista social que a faça se comportar como tal. A contrapartida instrumental desse novo marco político seria a emissão de eurobônus, propiciando ao BCE um verdadeiro fundo de estabilização fiscal, capaz de socorrer as economias insolventes.

O conjunto daria ao euro um lastro de soberania em relação aos mercados , retirando-se dos apetites especulativos o controle que ora exercem sobre as dívidas soberanas, os Estados e toda sociedade. Seria o fim do torniquete neoliberal que ordena e corrói a moeda única atualmente.
Explícitos ou não, esses dilemas vão permear a agenda da reunião de Bruxelas na próxima 6ª feira, naquela que está sendo apontada como a cúpula da redenção ou da derrocada final do euro.

As bolsas européias comemoram por antecipação. Parecem seguras de que o encontro livrará a Europa do incômodo papel de epicentro da crise mundial do capitalismo. Se depender, como depende, da dupla Merkel/Sarkozy, a redenção não está tão próxima.

Nesta 2ª feira, em Paris, a dupla acenou com uma refundação seletiva da UE que dobra a aposta no tripé ortodoxo feito de equilíbrio fiscal estrito -leia-se, mais arrocho -; zero de mutualismo fiscal e nada de eurobônus. Se for isso, a luz no fim do túnel vislumbrada pelas bolsas é a do lança-chamas cuspindo fogo num comboio de gasolina. A ver.

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