Os desafios do continente africano para os objetivos do milênio



O que fazer e como, para que a África possa seguramente construir seu desenvolvimento social e econômiico?
por Kabengele Munanga
Dois mil e dez foi o ano comemorativo do cinquentenário da independência de muitos países da África Subsaariana. Tanto no continente africano como nas antigas metrópoles, como França e Bélgica, o clima geral foi de festas, lamentações e reflexões.
Aproveitou-se para fazer um balanço crítico, não apenas para os dezessete países da África que obtiveram sua independência em 1960, mas também para refletir sobre o quadro geral dos países africanos no que diz respeito aos objetivos do milênio. Esses objetivos consistem em erradicar a miséria e a pobreza no continente, construir uma cultura de paz e fortalecer o processo democrático. Desenvolvimento, palavra-chave em torno da qual gravitam todas as questões, está no centro de todos os discursos e debates.
A primeira grande questão que todos colocam é: por que a África, em comparação com países da Ásia e da América do Sul, não tão distantes dela nos anos 1960 em termos de desenvolvimento (todos eram considerados países subdesenvolvidos), não conseguiu globalmente e de forma significativa levantar voo rumo ao desenvolvimento, apesar de suas imensas riquezas naturais e minerais e grande diversidade humana e cultural?
A segunda questão, consequência da primeira, é: o que fazer, e como, para que a África possa seguramente construir seu desenvolvimento social e econômico?
A resposta às duas perguntas leva em conta a análise dos fatores do desenvolvimento e das dificuldades que o bloqueiam. Entre estas, relaciona-se notadamente os legados do tráfico negreiro, da escravidão e da colonização; as dificuldades para a construção da democracia e da nacionalidade; os conflitos etnicopolíticos ou as guerras civis e sua violência; a má governança; a ausência de uma educação que liberte culturalmente, com enfoque nas necessidades e realidades africanas; a violação dos direitos humanos, a começar pelo direito à vida; a falta de investimentos em ciência e tecnologia, com aplicação na agricultura e na indústria de manufaturados; a falta de investimentos na saúde pública, começando pela produção de alimentos; a falta de instalações sanitárias e de água potável; a pandemia de aids, o paludismo e outras doenças curáveis que matam mais na África que em outros países desenvolvidos, por falta de infraestrutura médica mínima; sem esquecer os neocolonialismos que persistem na figura dos organismos internacionais e multilaterais como o Banco Mundial, FMI, OMC, G8 etc. Diz-se, com certo exagero, que no trem em direção ao desenvolvimento os africanos aparecem, geralmente, como simples viajantes, em vez de pilotos ou copilotos do próprio destino.
A imagem afropessimista apresentada pela imprensa internacional visa, quase sempre, a África Subsaariana, mas os últimos acontecimentos sociopolíticos nos países da África do Norte, em especial nos três países do Magreb (Egito, Tunísia e Líbia), mostram que todo o continente africano vai mal em termos de construção dos regimes democráticos e, consequentemente, do seu desenvolvimento socioeconômico. Isso não quer dizer que faltam exemplos de crescimento econômico significativo, apesar dos casos de regressão socioeconômica observada em outros países africanos depois da independência, exemplo da atual República Democrática do Congo. Mas, de modo geral, mesmo nos países que acusam taxas de crescimento econômico positivamente surpreendentes, como a África do Sul (4% em 2005), Angola (23% em 2007), Moçambique (8% entre 2000 e 2006), ainda se observa: degradação da situação social (miséria, desemprego, mortalidade, aids), aumento das desigualdades econômicas entre as classes sociais e degradação e insuficiência das instalações sanitárias, de moradia e dos sistema de saúde, de transporte público e dos meios de comunicação em geral.
Nos últimos dez anos, isto é, do ano 2000 para cá, Le Monde Diplomatique Brasil vem oferecendo a seus leitores, através de diversos textos e artigos, e criticamente, a gama de questões que emperram o processo de desenvolvimento no continente e os desafios para enfrentá-las. A leitura e releitura desses textos ajudarão também a entender e interpretar melhor os acontecimentos atuais que ameaçam os regimes políticos ditatoriais em vigência nos países do Magreb, todos caracterizados por falta de democracia e negação dos direitos humanos. Os textos analisam com ênfase a situação dos países da África Subsaariana que, desde sua independência em 1960, não conseguem, em sua maioria, se constituir como Estado e como Nação, por causa de conflitos étnicos e regionais, ou dirigentes ditatoriais que engendram golpes militares para levar outros grupos ao poder.
As tentativas de eleições democráticas, desde 1990, são sempre acompanhadas de contestação e acusação de fraude, como aconteceu em Zimbábue, Guiné-Bissau, Quênia, Costa do Marfim, República Democrática do Congo, Guiné Conacri etc... Quando não reeleitos, dirigentes são, às vezes, substituídos por seus filhos (Togo, Gabão, República Democrática do Congo, entre outros), disfarçando o princípio básico da regra democrática que exige alternância no poder, que quando acontece, em raras exceções, é simples passagem do poder para as mãos da oposição, sem implicar necessariamente um novo projeto de transformação da sociedade. Além de deteriorar os ambientes eleitorais, os textos constitucionais fundamentais são manipulados ou mudados em função dos interesses dos que estão no poder, provocando certa identificação entre estes últimos e o Estado nacional. Má governança, corrupção, desvio de verbas públicas, nepotismo étnico e ganância são, entre outras, características dos poderes dos dirigentes africanos que deterioram os termos de uma gestão democrática.
Onde está a riqueza dos textos que compõem este dossiê que o Le Monde Diplomatique Brasil coloca à apreciação de seus leitores? Além dos textos de conteúdo sintético com análises históricas e estruturalistas que ajudam a entender os problemas comuns à África, o dossiê apresenta textos contextualizados no tempo e no espaço, com base nas experiências particulares de alguns países, para evitar generalizações abusivas capazes de mutilar a riqueza da diversidade continental. A África toda não é a mesma coisa, mas tem muitas semelhanças e experiências comuns que o dossiê fez bem em ressaltar e respeitar. O leitor vai certamente, no decorrer da revista, se deparar com a experiência de países que não lhe são totalmente estranhos, tais como África do Sul. Angola, Benin, Burquina Faso, Burundi, Chade. Costa do Marfim, Gabão, Gana, Guiné-Bissau, Guiné Conacri, Guiné Equatorial, Mali, Madagascar, Marrocos, Mauritânia, Moçambique, Níger, Nigéria, Quênia, República Democrática do Congo, Ruanda, Senegal, Sudão, Tunísia, Uganda, Zâmbia e Zimbábue.
Como já foi dito anteriormente, certo número de artigos de caráter geral sintetizam aspectos e questões comuns a toda a África, tais como Educação, Saúde, Desenvolvimento, Violência, Geopolítica, Meio Ambiente, Comércio e Política Internacional, entre outros. Somadas, as duas abordagens, a generalista e a nominalista, ajudam o leitor a entender os desafios comuns de todo o continente para o milênio, por um lado, e as particularidades de alguns países analisados sob o prisma de algumas questões, por outro lado.
Grosso modo, o dossiê é organizado em torno de três blocos que se articulam para caracterizar os desafios de toda a África em matéria de desenvolvimento. A saber: 1) Democracia, guerras civis, governança, violência e direitos humanos; 2) Saúde e medicina; 3) Desenvolvimento, ao qual se vinculam temas e questões que compõem outros itens. Sem esgotar a análise dos fatores e fatos que compõem a complexidade dos desafios da África, o dossiê oferece ao leitor que não tem familiaridade com o continente algumas balizas que ajudam a sair do lugar comum e a evitar análises preconceituosas que naturalizam a explicação de conteúdos históricos, ideológicos, políticos e sociais.Á


Kabengele Munanga
Professor titular do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, professor orientador do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP e diretor do Centro de Estudos Africanos da USP.

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